Baleia vai levando. Vida sofrida, teve filhos que nunca mais viu, apanhou, foi traída. A vida endureceu a pobre Baleia. Quando foi adotada por uma veterinária, não se deu com a cachorrada do seu novo e primeiro lar. Baleia aprendeu que na vida é cada um por si e acabou matando uma pequena. Foi expulsa. Não gosta de latir sobre o assunto.
Voltou pra rua. Só os calejados vencem a rua. Morou em terrenos baldios, um a um foram tomados por obras, onde Baleia tinha uma relação agridoce com pedreiros - muitos deles tão toscos quanto ela. Conheceu a maldade humana também.
Mas Baleia tem os olhos tristonhos e cativantes, esse traço genético dos legítimos vira-latas - talvez a herança que garantiu a sobrevivência dessa raça por tantas gerações. Baleia com seus olhos conquistou uma família que veio morar no bairro, num apartamento no primeiro andar. Levavam comida e carinho; para Baleia estava bom. Tinha a liberdade da rua, comida temperada e carinho eventual. Só não gostava do nome; Porque chamavam ela de "Mayara" ? Eu lá tenho cara de "Mayara" ?
Chegou um casalzinho pra morar na casa-castelo, que ela tão bem conhecia por dentro mas há tempos já não podia entrar pela porta da frente (e por nenhuma outra). Foi chegando de mansinho, um dia entrou na garagem e ficou aquela noite. E a outra, e a outra. Saía pra fazer a toilette fora (esta é a verdadeira etiqueta: aprendida e não obedecida).
Baleia recebia comida e enterrava na areia no terreno da frente. Não é boba, sabe que não pode confiar nessa macacada louca. Tinha outras manias de bicho-do-mato, é arredia, Baleia podia se chamar
"Juma". Mas a mamãe Tutu batizou a Baleia de
Baleia, o nome da cadela esmilingüida de "Vidas Secas". Baleia gostou e o pessoal acha que o nome se deve à semelhança com a pelagem da Orca. Baleia gosta de ser Orca quando late no portão protegendo a casa que agora é dela. Mas no fundo é doce a Baleia, e conquistou o coração do vovô Bismarck, que essa semana deu uma casinha de madeira só pra ela. Baleia desconfiou (como sempre) mas já tá metida lá dentro (papai mostrou que era seguro).
Baleia vive dias de abundância e tranquilidade, manteve a liberdade de sair pra rua e voltar chafurdada e às vezes cheirando a carniça (Baleia saiu da favela mas a favela não sai dela). Mas esse tempo não dura muito não, porque lá vem um demoninho pra cavalgar no lombo da Orca, esticar ainda mais essazoreia e chafurdar na lama com a coleguinha.
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Mas já avisei a mamãe, se o neném-menino não se comporta, vai dormir na casinha com a Baleia, ah vai !
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